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sábado, 19 de maio de 2012

Identidade, normalização psicossocial: há tempo para ser?

Mente inquieta e imaginação fértil são males dos quais padeço desde sempre. Desta vez, a revelação de uma amiga intrigou-me. Num tom quase revelador, esta inteligente mulher negra, candomblecista, mãe exemplar e super consciente de suas pertenças étnicas e sociais, confessou-me gostar muito de uma determinada música gospel. Naquele momento a confortei dizendo que também sofria do mesmo mal, inclusive, tenho a tal música na lista de músicas de meu celular e que a ouço vez por outra.

Dormi, acordei e a tal mente inquieta me instiga: "Caramba, como nós, seres humanos, resumimos nossa existência a uma identidade estanque!" Afinal, por quê fazemos isto? Por que seria incompatível uma pessoa candomblecista gostar e ouvir uma música dita evangélica ou uma pessoa evangélica ouvir uma cantiga de candomblé? Só para usar o viés religioso, já que foi esse o tema que me despertou interesse.

É claro que poderíamos falar da intolerância religiosa e de como somos afetados/as pelas consequências da mesma. Tendo que nos defender, nos mobilizar, nos precaver e de como isto nos deia reativos em relação a cultura religiosa que nos oprime, impulsionando assim uma segregação de ambos os lados, uma vez que os efeitos da intolerância afeta  tanto os intolerantes quanto os intolerados ou desrespeitados.

Porém não pretendo me estender nas questões sobre a intolerância e seus efeitos, prefiro refletir a respeito deste tema a partir de um conceito abordado por Francisco Paes Barreto em seu texto "A Psicanálise aplicada ao campo da saúde Mental"_ a 'normalização psicossocial'.

A norma ou normatividade poderia ser discutida por diversas óticas: filosófica, política, jurídica, psicológica, porém aqui reduzirei esta grande discussão e entenderei norma como um consenso social sobre aquilo que é limite e aceitável em determinada cultura, sendo importante ressaltar que o ser humano existe em relação a esta norma. Para a Psicanálise, o sujeito nasce e se funda em uma Linguagem, isto é, em uma cultura linguística que compreende normas e padrões que falarão através do sujeito a partir de suas escolhas e inserções.

A Linguagem é um OUTRO, algo anterior ao sujeito que delimita regras, leis e insere o sujeito em uma sociedade, a Psicanálise não ajuiza valor a esta Linguagem, apenas aponta sua existência como fundante do sujeito e barreira preventiva da barbárie.

Isto posto, voltemos às inquietações causadas pelo suposto paradoxo entre ser candomblecista versus ouvir música evangélica. É claro que nem minha amiga, nem eu sofremos com esta questão, nem sentimos isso como algum paradoxo, porém, percebo que há certo estranhamento ou tensão no ar quando encontramos estes dois elementos juntos. Um sujeito candomblecista não pode ouvir música cristã, por que sua identidade como candomblecista seria afetada com este ato?

Segundo uma rápida definição de identidade, entendemos que se trata de uma série de características, escolhas, pertenças através das quais podemos diferenciar as pessoas, seria um conjunto de escolhas que nos identificam de forma mais ou menos permanentes.

A formação identitária está relacionada, em última análise, com a Linguagem a que o sujeito pertence, quero dizer que radicalmente, somos definidos por um OUTRO e o trabalho para manter a mente são é fazer deste nascer do OUTRO, uma estrada única, de escolhas subjetivas ou partindo de si mesmo para uma forma de estar no mundo.

Para o senso comum o que se espera de uma pessoa candomblecista e aqui falo de cristãos e dos oriundos de outras religiões, é que esta pessoa não ouça músicas evangélicas, não fale o nome de Jesus e etc. Talvez, a pessoa candomblecista não faça isso mesmo, afinal, ela já sofreu tanto com a intolerância, com as distorções do sincretismo, que para ela não fará sentido cantar e exaltar o ícone daquilo que a/o oprime.

O grande salto desta reflexão é 'sacar' que a pessoa candomblecista não existe, assim como ão existe a Mulher, nem o analista, ser candomblecista é um constructo identitário, não define o ser, quem existe é a "Austregésila", que tem uma história, com suas pertenças étnico-sociais e sua identidade reconhecida coletivamente se inter-relaciona com esse seu ser subjetivo, e este seu ser subjetivo pode ou não estar em acordo com aquilo que ela geralmente aparenta à Linguagem.

A "Austregésila" está "mais além" da pessoa candomblecista e sua personalidade não é estanque. A cristalização dos comportamentos leva ao engessamento do ser e à doença. Acho importante ter em mente que aquilo que nos identifica não deve nos paralisar em uma identidade imutável e sem elaboração criativa.

Tão saudável quanto estar referenciado a uma pertença social clara e definida é ser livre para ser o que quiser ser e o que puder ser. De outra maneira, estaríamos encerrados em uma normatividade ortopédica que se impõe ao ser de forma a podar e a moldar nossos comportamentos, pensamentos e modos de estar no mundo.

Uma outra reflexão que volta a inquietar-me é a atual "ditadura do politicamente correto", é claro que devemos pensar a respeito das diversidades/diferenças, mas será isto um determinante para que se aceite tudo? Não seria essa aceitação e incorporação total uma espécie de homogeneização de tudo e todos? Mas ainda preciso refletir mais sobre isso e esse é um papo para outro devaneio...

Aproveito para agradecer a minha amiga que proporcionou-me este momento de reflexão e também de libertação do meu preconceito contra mim mesma e dizer a ela que  já que precisamos muito de um milagre para compreender o incompreensível, então...

"Me faz um milagre, me toca nessa hora, me chama para fora, ressucita-me!"

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