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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Crônicas da Serpente: sobre como a violência nos despersonaliza



Seria uma noite comum se não fosse um evento de ruptura. E a ruptura era a realidade que vivemos em nossas cidades. Sim, foi um assalto, apenas mais um assalto que poderia ser muito mais, bem pior, se eu não acreditasse que sou muito bem protegida. 
Seria apenas mais um assalto se não fosse apenas 21h, seria apenas mais um assalto se eu não estivesse há menos de uma quadra de minha casa, de meu ambiente “seguro”, seria apenas mais um assalto se eu não fosse mulher, negra, pensadora e religiosa.

É inegável que a violência vem crescendo em nossas cidades. No Brasil temos pesquisas que atestam esse crescimento e, atestam mais, que as maiores vítimas da violência são as pessoas negras. Vide Mapa da Violência no Brasil (LAESER). Pensar na causa ou nas consequências deste fato não são suficientes para cuidar do que está acontecendo neste momento com algum ou alguma cidadã. 
A realidade é que enquanto escrevo e enquanto você lê, há alguém sofrendo algum tipo de violência. Podemos pensar nas variáveis Educação Formal, Educação familiar, falta de contato das crianças com seus pais, mães, familiares que acaba resultando numa criança cuidada pela vida e pela falta de sorte. Pensamos também na falta de acesso a bens e serviços como moradia, saneamento básico, sistema de saúde de qualidade, alimentação adequada... 

Particularmente, penso na falta de amor e diálogo com a qual tratamos nossos pares na vida, penso na competitividade que nos faz hierarquizar relações de trabalho, de amor, de amizade e nos faz viver em função de sermos melhores que outros em algum aspecto, penso no racismo como um mal que nos adoece a todos/as e ao qual estamos submetidos por sermos parte de um país de cultura colonizada.

É bem verdade que nosso pensamento ocidentalizado nos faz focar no “eu”, responsabilizamos o capitalismo, neo-liberalismo, individualismo, racismo e muitos outros “ismos”, a questão é que tudo isso faz parte de nossa forma de ver e experimentar o mundo, esses “ismos” todos estão contidos em nossa formação como seres (não, eu não direi que somos humanos) e que embaça nossa visão sobre o outro como alguém igual a nós, o outro passa a ser não apenas o diverso, mas o ruim, o inferior, o errado. o "não-eu" e, assim, temos um problema a ser resolvido. Mas, assim como contemos esses aspectos em nossa formação como seres sociais, também temos, ou podemos ter, um compromisso com a coletividade, com a construção de um lugar mais tranquilo para vivermos. Utopia? Não pretendo responder esta pergunta.

É fácil dizer que não conseguiremos viver por muito tempo com este aumento da violência, mas há violências que sempre foram cometidas em nossa sociedade e qual é a nossa responsabilidade pessoal nesse quadro? Porque, certamente, este não é um problema externo a cada um de nós, não é um problema dos “políticos”, do Estado, nem de um Outro sem nome. Quem sofre e pratica violência somos nós, desde a violência física contra o outro até violência da negação do outro, a negação da realidade, passando por aqueles que sentam em seus privilégios de nascimento, de lugares de poder, de cor, de gênero e não recortam o olhar para uma realidade mais ampla e violenta.

Não pretendo eximir as instâncias representativas de poder, sejam elas políticas governamentais, não governamentais, ou mesmo, religiosas (das mais diversas tradições) de trabalhar, legislar, orientar e atuar para um ambiente de igualdade e para a resolução dos problemas , porém, para além das instituições, quero atentar para um compromisso pessoal de cada um para este fim.

Eu, de certa forma, neguei a realidade quando não me preocupei ao chegar em casa às 21h. Mas veja bem, era 21h, era o meu bairro, onde nasci e cresci... Porém, este mesmo bairro foi afetado por diversas mudanças, aumento populacional devido a doações de terras pela Prefeitura, sem ampliação da rede de água, esgoto, luz, pavimentação e, além disso, mais recentemente, o aumento da violência pós implantação das UPP's nas zonas sul e norte do estado. Com isto, criou-se um ambiente de “favelização “do local, inúmeras ligações clandestinas de água, luz e esgoto aliada a ausência do poder público, aumento de ofertas comerciais locais, aumento do consumismo.

Paralelamente, observávamos as crianças brincando menos nas ruas, as ruas ficando mais escuras, menos cadeiras nas calçadas em dias de calor, antigos comerciantes colocando grades em suas lojinhas, pessoas aumentando muros das casas e também as barreiras de comunicação. Eu vi tudo isso acontecer e neguei. Era o meu bairro e eu, mulher livre e pensante, não permitira que a violência cerceasse meu direito de ir e vir! Quão tola eu fui.Como se algum dia meus direitos de ir e vir tivessem sido respeitados...

A violência altera o comportamento das pessoas e das sociedades que nela vivem, a mudança nos hábitos de meus vizinhos e da sociedade em geral, não se deve apenas porque eles se deixaram dominar. A violência, da forma como vem tomando as cidades, é mais um componente associativo aos nossos “ismos” (capitalismo, neo-liberalismo, racismo, individualismo) a moldar nossas personalidades. Em verdade, a violência é produto desses “ismos”, porém ela tem se colocado como variável distinta e de corte para observação de nossas práticas diárias.

Ainda estou avaliando em mim mesma os efeitos da situação de terror, não somente pelo que aconteceu, mas pelo que poderia ter acontecido. A vivência do assalto me despersonaliza, me faz número em estatística, me faz vítima, mas há consequências bem mais profundas, como a de não sentir-me segura em minha própria casa, no meu próprio corpo. É claro, ou não tão claro, que não me deixei tomar pelo trauma, mas eu penso e critico a situação. Uma mulher negra, abordada por quatro homens igualmente negros, em duas motos, à noite, em uma rua escura da Baixada Fluminense. Em qualquer página de jornal, o desfecho dessa matéria seria trágico e ter a consciência disso me faz, ser agradecida da minha proteção espiritual, por um lado, e me faz reagir entre o atordoamento e a força para tentar resolver o problema.

Mais do que atordoar, essa experiência descortina que, na verdade, nunca estive segura. O fato de ser mulher, negra e moradora de um município periférico, já me colocava em situação de vulnerabilidade desde sempre.

O bem material que eu perdi, eu já recuperei, mas a Nany que eu perdi, distraída e descuidada, quem sabe se irá voltar um dia? A vivência desse pequeno assalto, mudou minha rotina e meus hábitos, tomar medidas de segurança parece uma resposta óbvia para alguns, mas não poder voltar pra casa depois de um dia cansativo é bem difícil. Essa experiência causou mudanças para mim, para minha família que se preocupa, para amigos que se propuseram a me receber em sua casa para que eu não me exponha mais à violência naquele horário, mobilizou um monte de gente em medidas de proteção, motivadas pelo medo. Mas e quanto as medidas de prevenção? 

Porque aqueles meninos negros estavam ali? Nenhum deles tinha a minha idade, todos na faixa etária de maior índice de mortalidade de homens negros, de 18 a 24 anos, todos alijados da estrutura social, quem sabe quais as oportunidades que tiveram? Mas tendo em mente o quadro social e racial do país, sabemos que não foram as melhores oportunidades. Até quando iremos personalizar a violência naqueles que as cometem e iremos nos desimplicar de nossas próprias práticas? Até quando iremos olhar pros nossos próprios umbigos e nos eximir de lutar por um quadro mais justo para todos? Até quando vamos tomar medidas por medo?

Perguntas sem resposta. Eu não tenho respostas para o que posso eu devo fazer agora sobre essa situação, mas posso contar, posso questionar a vocês, posso me questionar sobre qual o meu papel nesse quadro e posso tentar me manter viva pra ver algo mudar com a minha contribuição, mesmo que seja apenas esta. Eu gostaria de voltar a ser distraída e despreocupada como antes, mas esse direito, a violência me tirou.

3 comentários:

Di disse...

Excelente texto, Nany. Uma análise mais subjetiva da situação. Nós somos empurrados diariamente a esse caminho da "não-segurança" de ir e vir. Andamos preocupados, receosos e desconfiados. Tristes dias.

Régis disse...

Nany
Meus respeitos.
Parabéns pelo texto!
Um texto totalmente coerente e de grande relevância.
Cito:"Quem sofre e pratica violência somos nós, desde a violência física contra o outro até violência da negação do outro, a negação da realidade, passando por aqueles que sentam em seus privilégios de nascimento, de lugares de poder, de cor, de gênero e não recortam o olhar para uma realidade mais ampla e violenta."
Que muitos possam ler e refletir.

Nany d' Ewá disse...

Obrigada Régis, pela leitura e pelo comentário!