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sábado, 15 de dezembro de 2012

Crônicas da Serpente - parte I

Eu nasci em uma casa onde a família sempre foi um conceito muito importante. Como em muitas outras famílias, às vezes, as pessoas não conseguem viver juntas, mas não admitem que falem mal ou prejudiquem seus entes queridos. Assim somos nós, da Família Souza.

Só que para nós, "família" não se trata somente da família co-sanguínea, nem a família linear. Tem as primas da mamãe, primas até da minha vó, os que ingressaram por casamentos, os que ingressaram por amizade, os que foram criados juntos, enfim, ao longo da minha história percebi que as pertenças famíliares eram muito mais amplas do que eu  podia imaginar.

Tem gente que eu jurava que era parente de sangue e não é...

Pois bem, tinha um senhor chamado Seu João. Ele era dessas pessoas antigas, preto-velho matreiro, cheio de mandingas e intuições. Acredito que ele já tenha falecido, pois desde que me entendo por gente, Seu João já era um senhor, era amigo da família, ele era da família. Tanto que quando mamãe encontrou com ele há uns 17 anos atrás ele disse: "Não vou perguntar por sua mãe, pois sei que ela já se foi, ela veio me avisar da partida dela, vou perguntar então pelo seu povo.".

Seu João trabalhava conosco na época da minha avó, trabalhava assim, capinava o quintal, fazia pequenos serviços de pedreiro, proseava bastante, sempre almoçava aqui em casa e tirava uma cesta depois do almoço no sofá marrom da salta de estar. Me lembro como se fõsse hoje e eu era apenas uma menina. Minha mãe conta que Seu João tinha uma namorada na outra rua, aqui perto, e que só depois de anos de convivência aqui em casa que souberam que ele tinha uma família. Mas isso foi antes de eu nascer.

Tinha uma coisa especial que ele fazia muito bem, ele plantava árvores.

Antes de eu nascer, quando minha mãe ia construir a nossa casa, aqui mesmo no quintal da minha avó, havia um pé de Ficus Italiano, onde ficaria a cozinha dela. Seria preciso cortá-lo, foi quando minha mãe pediu a seu João para fazer o serviço, ele foi até a árvore, olhou e falou:

"Esse pé de ficus tem 'dono' e ele não quer sair daí não."
Mamãe respondeu: "Mas nem sei quem plantou, nem sabia que tinha dono, como vou fazer a cozinha?"
Seu João, homem antigo, conversava com as divindades, e por mais que duvidem, ele jogava búzios, usando caroços de feijão. Ele disse então:

"Vou conversar com o dono e vamos ver o que posso fazer..."

Seu João chegou a um acordo com o dono e falou que o Ficus sairia, mas teria que plantar outra árvore e assim fez.

Quando Seu João foi plantar a Mangueira, minha avó não quiz, falou que a árvore cresceria muito, que ia arrebentar o chão, a escada... Mas ele disse que ela não cresceria muito e que era preciso plantar outra árvore. O 'dono' queria isso.

Seu João plantou a Mangueira, de fato, ela não cresceu tanto, enquanto minha avó esteve viva.

Uma das maiores lembranças da minha infância são os sucos de manga que minha mãe fazia quase todo dia. A mangueira era um espetáculo, 'dava' manga o ano todo. Eu e meus primos gostávamos muito. Graças a mamãe e a mangueira, minha infância tem cheiro de manga e maracujá, com certeza.

A mangueira tem mais ou menos a minha idade, 33 anos.

Debaixo dessa mangueira eu me refugiava do sol, eu brincava, me escondia, eu cresci, continuei conversando com os amigos na sombra dela, nos dias de tristeza eu chorava, mesmo sem saber ainda da história do dono, eu conversava com ele debaixo da mangueira, sempre falava com alguém lá e achava que era um homem.

Embaixo dela, vi meu amor chegar com saudade, ouvi dizer que me amava. Abracei, beijei... ela foi testemunha da minha história, todo dia quando passo diante dela olho, cumprimento, nos últimos tempos com algum pesar.

Acontece que minha avó faleceu, já fazem 18 anos e quando ela se foi a mangueira entristeceu um pouco. Ela, que 'dava' mangas o ano todo, passou a nos prestigiar somente no verão, como todas as outras mangueiras... Mas ela nunca tinha sido comum, eu estranhei.

 Ela cresceu, cresceu, cresceu, teve que ser podada algumas vezes, mas estava ali, sempre forte, firme.

Minha mangueira adoeceu e eu não vi.

A mangueira da minha avó, a mangueira que foi plantada por Seu João, o velho matreiro que fez o acordo com o 'dono' para retirar o Ficus italiano, para que minha mãe começasse a escrever nossa história, está morrendo. De forma incomum, como ela sempre foi. A metade dela ainda dá frutos, lindos e saudáveis, a metade frondosa, de folhas verdes... A outra metade seca, triste, com fungos, morta... Eu me entristeci por causa dela, eu rezei, eu avisei, eu observei, mas não tem jeito.

Há dois dias atrás ela soltou um de seus galhos, causando confusão tremenda. Vizinho sem telefone, chama a companhia telefônica, o poste cai... Cai em cima do muro, da árvore, da velha amiga... E chove, chove, o medo têm nos angustiado. Liga pra Defesa Civil, Bombeiros, chama o homem da serra, homem que corta, chamem, chamem, mas temos que esperar.

A mangueira e a goiabeira são as duas árvores que restam do tempo da minha avó, das tantas outras que moravam aqui e que foram cortando, acimentando, das tantas outras que foram retiradas da nossa casa. O coqueiro, a amendoeira, o pé de Pitomba (macho), a bananeira, o pé de colônia, a aroeira, pé de Jamelão, esse sujava minha roupa toda, mas eu gostava... Umas eram grandes demais, destruíam a calçada, o alicerce da casa, ocupavam espaço, para alguns a estética cinza era mais importante.

Lamento não ter sido perguntada, eu gostava delas, mas eu era pequena e mais tarde eu estava longe, acharam que não faria diferença...

A Mangueira está lá, ainda de pé, ambígua, partindo, partida e eu aqui, lamentando, recordando, imortalizando a importância de um pé de árvore na construção da minha história, da nossa história familiar. Espero que o 'dono' compreenda, espero que esse seja o tempo dela, pois tudo tem um tempo. Espero que seja apenas um final de ciclo como tantos outros que terminam agora nesse surpreendente 2012.

Ela vai, mas ficará pra sempre na minha história.




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